Não vou dizer que foi desperdício de tempo aquelas poucas semanas em que estive com Tereza. Houve ocasiões em que pudemos travar ótimos diálogos sobre assuntos dos mais incríveis, íamos do metafísico ao cósmico numa sintonia comovente. Pena que essa sintonia só ocorria nos poucos momentos em que a encontrei com a cuca funcionando. Na maior parte do tempo Christina se apresentava completamente fora de si, numa mistura louca de nicotina, álcool, substâncias alucinógenas e remédios tarja preta. Aquela advogada engolia desses comprimidos com se fossem balinhas tic-tac, numa explosão de espasmos e frases desconexas capaz de deixar qualquer um louco estando ao seu lado. Colocava alguns comprimidos na mão e num lance jogava tudo para dentro da boca, emendando logo em seguida um caprichado gole de vinho ou cerveja. Antes disso uma boa tragada no baseado, e mais uma depois. E cigarros o tempo todo. Era de dar dó assistir aquela advogada brilhante, respeitada e requisitada, se destruindo daquela forma. O tipo de experiência aventureira que me deixa aborrecido com a vida, me sentindo como se preso dentro do vagão de trem que partiu do nada rumo a lugar nenhum.
Até poderia ter sido magnífica a última noite em que estivemos juntos. Eu estava passando uns dias na pousada de um amigo europeu que mora há alguns anos em Florianópolis. Ele havia viajado para o velho continente e me pediu que passasse esses dias morando no lugar. Uma casa luxuosa, com uma ampla sala de três ambientes, sofás de todos os tipos para todos os gostos, lareira para as noites frias e piscina para os dias quentes. Um convite às boas coisas da vida.
Nessa noite tirei o Fusca do Amor da garagem e peguei Tereza Christina em sua casa, fomos a um bar tomar alguns chopes de trigo e em seguida fomos curtir a noite na sala da pousada. Já havia deixado algumas garrafas de vinho esperando por nós. Desarrolhei a primeira e nos servimos. Acendi a lareira para espantar o friozinho que fazia naquela noite. Coloquei um show do Coldplay para garantir o ritmo da noite. Para ficar ainda melhor liguei o retro-projetor que se encarregava de lançar a apresentação da banda numa das paredes daquela sala fantástica. O baseado já estava fechado sobre a mesa e então tudo o que nos restava fazer naquele momento a gente fez, nos jogamos num dos sofás e em segundos já estávamos sem roupas, Christina sentada em cima de mim, cavalgando, me beijando, fazendo com que sua presença valesse a pena e com que nada mais tivesse importância.
Terminamos e nos vestimos, servi mais vinho. A banda tocava Trouble, então aproveitei e tirei Tereza Christina para dançar. Aquela noite estava boa a valer. Incrível. Ela havia me prometido que deixaria os comprimidos tarja preta de lado e que iríamos nos divertir para valer. E estávamos, realmente. Acendi o baseado para nos aproximarmos ainda mais do cosmo e tudo parecia irradiar uma energia impossível de descrever, apenas sentir. Abri a segunda garrafa e fomos para o outro sofá, trocar carícias e ótimas idéias, curtir a vida.
A noite prosseguia e a gente aproveitava nessa mistura de sentimentos e sensações. Num plano astral bem diferente do que aquele que a ordinariedade do dia-a-dia costuma nos oferecer. Tereza então se esticou e alcançou sua bolsa, que estava jogada no canto do sofá. Abriu e sacou três cartelas de comprimidos.
- O que você está fazendo?
- Não consigo ficar sem meus comprimidos, Alvarêz.
- Mas você havia me dito que iria deixa-los de lado essa noite.
- To de boa, vou tomar só esses, não vai rolar nada, é só para seguir a prescrição.
- Não há prescrição, sua maluca, nenhum médico iria prescrever um bombardeio de remédios tarja preta dessa forma. – Eu disse e comecei a rir. Ela, também, gargalhou e num lance encheu a boca daquelas porcarias.
Não demorou muito e Christina começou a sair de órbita. Seus olhos vidrados não se fixavam em nada, ela estava em outro lugar. Dizia muita coisa, mas nada fazia muito sentido. Puxei ela para o sofá para mais uma trepada, mas ela parecia rodopiar sobre mim, era como fazer sexo com uma entidade espiritual que acabara de se materializar à minha frente, mas que eu não conseguia alcançar um contato físico definitivo. Parecia me escapar pelas mãos. Era como se minha pica fosse a chave do portal para um novo mundo, e ali, conectados, nos lançávamos a planos longínquos. Fazíamos a ponte entre dois mundos paralelos, ela lá e eu aqui.
Depois disso as coisas foram ficando cada vez pior. Tereza Christina caminhava pela sala como um zumbi, esbarrando em tudo, e pondo em risco a sua integridade e a integridade do lugar. Pobre advogada brilhante. Restava-me ficar de olho nela o tempo todo. Até que finalmente enchi o saco de tudo aquilo e a levei para o quarto para dormirmos.
Acordamos no dia seguinte e ainda na cama fiz alguns comentários repreendendo sua atitude na noite anterior. Tereza nada dizia. Ordenei que se vestisse para que eu fosse levá-la em casa.
Entramos no Fusca do Amor e fizemos todo o percurso até sua casa sem trocar mísera palavra. Quando estávamos a cerca de um quilômetro de sua casa ela me pediu que parasse. Queria descer e ir caminhando até sua casa, para aproveitar o sol da manhã. Atendi seu pedido e “Adeus e boa sorte” foram minhas últimas palavras a ela.
Agora estou aqui, sentado no banco desse coletivo, ouvindo a conversa do casal sentado a minha frente, eles me fazem lembrar de Christina. Engraçado, pois pelo que me parece eles não se conheciam até agora. Ele entrou, pediu licença e sentou ao lado dela. E o diálogo que esses dois passaram a travar tem o mesmo tom caótico de quando eu e Tereza nos encontramos pela primeira vez, num bar. De forma irônica e autoconfiante dizíamos um para o outro coisas do tipo “quem te garante que eu não sou um maluco?” ou “eu vou possuir o seu coração” ou “vou me apaixonar por uma louca como você?” ou “e você não corre o risco de se apaixonar por mim?” ou “você insiste porque você gosta de mim”. Deu no que deu.
Nico, ela está ouvindo Nico e emprestou os headphones para que ele ouvisse, também. Pois é... E o que será que Christina anda ouvindo agora?
o barulho do mar...numa praia deserta.
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