segunda-feira, 17 de junho de 2013
Asas.
Se fosse pedir por um milagre escolheria ter asas, leves como algodão e fortes o bastante para conseguir carregar esse meu corpo pelo tempo que fosse preciso.
Acordei naquele dia e Deus! Como eu queria um par de asas que pudessem me tirar da cama. Deus, eu não passava de um pobre e sujo, bêbado incorrigível. Era fim de mês, meus proventos já haviam evaporado ao longo do mês, e as minguadas notas de Real que eu tinha no bolso deixara no bar na noite anterior.
Levantei da cama nauseado. Pronto para vomitar todo o ar fedorento do meu estômago vazio. Sai do quarto e me arrastei pela sala tentando conectar alguma idéia na cabeça inchada. Não atinava nada, e num movimento agarrei a fechadura e pulei para fora do apartamento. Desci pelo elevador e ganhei as ruas, mero impulso inútil e desesperado em busca de ar. A cabeça continuava rodando, claro, e a sensação de que o mundo em volta iria se apagar palpitava intermitentemente. Coloquei as mãos nos bolsos e caminhei cambaleante até a praça.
Havia algum tipo de manifestação em frente à praça. Sentei numa mureta que me apareceu na frente e fiquei assistindo ao protesto. Eles pediam alguma coisa e apitavam, sei lá o que era, tudo que eu pedia eram asas, nada mais. Minhas mãos continuavam guardadas nos bolsos. Me olhei. Saquei que vestia a roupa da noite passada e conclui, de forma óbvia, que a roupa que havia vestido na noite passada era a mesma roupa com que havia dormido e que continuava vestindo. A diferença é que estavam engomadas antes e agora completamente abarrotadas.
Aqueles apitos do pessoal que protestava estavam me incomodando. Levantei de onde estava sentado e segui cambaleante pelo centro da cidade.
Era onde eu morava na época, no centro da cidade. Num apartamentozinho imundo de aluguel barato. Por sorte arrumei esse apartamento justamente num ponto do centro da cidade cercado de bares, além de uma casa de massagem que funcionava durante o dia e um puteiro que abria depois das nove, de segunda a segunda.
Segui caminhando sem rumo, sei lá por que. Talvez para poder sentir-me vivo, apesar de a sensação maior era mesmo de vontade de vomitar ou morrer. Mas bêbado e medroso fiz por onde me sentir vivo.
No meio de toda aquela gente eu provavelmente me igualava ao pior mendigo daquelas ruas. Torto, abarrotado e vacilante. De repente num impulso entrei numa loja de artigos chineses a preços populares. Nem sei por que fiz isso, mas posso afirmar categoricamente que não foi uma boa idéia. A loja além de entulhada de pessoas era forrada de itens de todos os tipos para todos os lados. Aquela combinação de pessoas multiplicadas por coisas de plástico fez minha cabeça querer estourar, a ponto de quase cair bobo no meio da maldita loja. Por sorte consegui deslizar para rua. Mãos nos bolsos e testa suando.
Não demorou para que eu sentisse muita fome. Cutuquei o fundo dos bolsos e encontrei uma nota de hum Real. Era um Real, mas brilhava feito ouro frente a meus olhos. E o medo de perder aquela nota foi tamanho que a dobrei duas vezes e guardei na meia. Dali segui em direção ao supermercado para procurar qualquer coisa que eu pudesse comprar com aquela nota e que servisse para me forrar o estômago.
Percorri os corredores do supermercado. Até que no corredor das massas encontrei um pacote de macarrão espaguete em promoção por 89 centavos. Sim, um pacote de macarrão espaguete por 89 centavos! Me sentia o homem mais feliz do mundo! Catei um pacote da prateleira e segui feliz rumo ao caixa.
A menina do caixa me olhava. Pensei “quem sabe eu não aparente tão mal assim, ela me olha e talvez eu seja um cara bonito”. “Oitenta e nove centavos”, disse ela. Então me abaixei e tirei a nota de um real de dentro da meia. Nem havia percebido, mas o calor me fez suar dentro da meia e a nota de um real estava ensopada de suor. Puxei a nota com a ponta dos dedos e assim a entreguei a bela menina do caixa. Ela segurou a nota e num impulso quase soltou. Me olhou novamente e eu sorri para ela. Ela jogou a nota dentro da caixa registradora e junto da nota fiscal me entregou uma moeda de dez centavos. Pensei no um centavo, mas resolvi deixar de lado, ela já havia feito eu me sentir deveras bem com aquele jeito de me olhar, então decidi não ser inconveniente por causa de um mísero centavo. Peguei meu macarrão e voltei para o apartamento pensando nela, que talvez a deveria ter convidado para almoçar comigo.
Sai do elevador e tomei o corredor até meu apartamento. A porta estava aberta. Acho que deixei aberta quando saí, pensei. Fui até o banheiro me olhar no espelho. Uma remela indecente me ocupava o canto do olho esquerdo. Abri a torneira e lavei o rosto. “Merda” pensei “será que foi por isso que a menina do caixa não parava de me olhar? Só pode ser” concluí.
Fui até a cozinha e vasculhei o refrigerador e os armários. Encontrei meia cebola e alguma manteiga. E foi o suficiente para eu preparar uma panela de macarrão daquelas! Servi-me um prato caprichado de macarrão acebolado, tão quentinho, nossa, meu coração se encheu de amor. Quis voltar ao mercado e oferecer alguma declaração de amor aquela bela menina do caixa, recitar um poema, cantar uma canção romântica. Naquele instante entrou pela janela, de algum apartamento vizinho, um perfume maravilhoso de asinhas fritas de galinha. Deus! Como eu queria ter asas!
Por fim tirei os sapatos e voltei para cama, torcendo que os próximos três dias passassem voando para enfim chegar o dia do pagamento.
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Meu pagamento ainda não chegou. Nem as asas.
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